o livro

Prefácio

Se escrever é dar a si mesma o presente da reflexão,
este presente é feito de matéria viva que vai crescendo, crescendo
e tomando cada vez mais espaço no armariozinho da vida.

Chega um dia em que se torna necessário abrir o armário
e botar o presente pra fora - desocupando a alma –
e assim permitindo que coisas novas e renovadas lá dentro se acomodem.

Marli do Junco
Cap. 1 - O Tempo

A Chuva


Um pinguinho de chuva caiu no bico do seio da menina,
Um calafriozinho lhe percorreu a espinha.

A folha recebeu a chuva de braços abertos,
Molhando-se por inteira, um orgasmo de felicidade ...

Fim da seca na roça.

Grota do Junco, Setembro de 2007

Eu ia passar roupa, mas acabou a luz


Eu ia passar roupa,
Mas acabou a luz.
O monte em cima da cama,
Lençol, calcinha e pijama,
As fronhas emaranhadas
E a toalha quase seca.

Eu ia passar roupa,
Mas a chuva despencou.
Com ela caiu a força
E a minha força acabou.

Grota do Junco, Fevereiro de 2006

O tempo


A roupa dança suavemente
Esticada no varal,
As andorinhas só vão aparecer no final da tarde.
Por enquanto o sol ainda trabalha,
Morrendo de calor lá no meio do céu.

Grota do Junco, Fevereiro de 2007

O bolo


Bolo assado de panela:
Se nao queima,
A vida é bela.

Grota do Junco, Fevereiro de 2006

Compromisso


Peguei o mancebo, meti o coador,
O bule por baixo, enchi de café.
Manhã muito fria, cadê o calor?
Vou sair de moto, a cavalo ou a pé?

Grota do Junco, Março de 2006

Desestruturada à beira do fogão


A água ferve na chaleira, A chuva parou, acabou a luz.
As andorinhas fazem barulho no forro da sala.
Seriam dez, vinte ou vingaram apenas duas?

A chuva parou e a luz acabou.
Só a água no fogo vai fervendo sem parar.
Quem sabe é assim a vida:
Uma coisa se acabando, outra se reduzindo,
Um barulhinho só, um murmúrio?

A água que ferve vai se acabando.
Se o fogo também se acaba,
Como é que se recomeça?
Com certeza tem um jeito,
Um caminho, uma razão?
Sei lá.

A chuva parou, a luz acabou,
Andorinhas no forro e a chaleira chiando.
O tição vai sumindo, sumindo, sumiu.

Grota do Junco, Fevereiro de 2006

Modo de fazer

Vamos fazer comida,
Vamos fazer um pão,
A receita é bem medida,
Tudo feito com pinhão,

Ai, tudo feito com pinhão...

A gente cata o pinhão,
Debulha, escolhe e cozinha,
Prá isso tem o fogão
E uma lenha bem sequinha,

E uma lenha bem sequinha...

Tem mulheres lá de Cunha,
Vargem Grande e Aparição,
Barra, Sítio, Paraibuna
E do Rio do Sertão,

Ai, e do Rio do Sertão...

No restaurante da Cida,
Ou juntas na barraquinha,
Muito felizes da vida
Prá frente a gente caminha,

Ai, prá frente a gente caminha...

Juntamos muita receita
E agora vamos mostrar
Que uma comida bem feita
É prá comer e gostar,

E é prá comer e gostar...

Olha o pinhão na panela,
Olha o fogo no fogão,
Olha o pinhão na panela,
Olha o fogo no fogão.

Grota do Junco, Fevereiro de 2009

Correntinhas


Vinte mulheres da roça,
Iguais Cinderelas do mato,
Saíram três dias de casa
Para aprender a bordar.

A moça que lhes ensinava
Vinha de Minas Gerais;
Trazia sua arte, seus dotes,
Sabia dizer e cantar.

Três dias de sonho viveram,
As vinte mulheres da roça.
Bordados bonitos fizeram,
Pontinhos de luz pelo ar.

Os dias passaram ligeiro,
Ponto à frente, ponto atrás,
Correntinhas se emendaram,
E conseguiram acabar:

Vinte quadrados de pano,
Vinte sonhos no bordado,
Agulhas girando, girando,
Sempre no mesmo lugar.

Se a vida delas mudou,
É difícil de dizer,
Pois a história acabou
E elas voltaram a viver;

As lidas do dia a dia,
O marido pra cuidar,
As vacas que davam cria,
A cozinha pra arrumar.

Mas uma coisa ficou,
Os pontinhos pra bordar.
E mesmo que tudo acabou,
Valeu a pena sonhar...

Grota do Junco, 17 de Junho de 2007

O Rio Paraibuna


Acho que o Paraibuna
Tá sofrendo inundação,
O rio tá se afogando,
Já não pode dar vazão
Pra tanta água que cai,
Que desce pelo sertão.

Assim como enche o rio,
Água demais, desperdício,
Se inunda minh’alma de frio,
Transborda o meu sacrifício.

Das vidas que eu já vivi
Magoas e dores passadas,
Amores que eu já perdi,
Esperanças afogadas.

Sem ser rio, sem ter chuva,
Na secura da tristeza,
Sozinha, pobre viúva,
Vou seguindo a correnteza.

Dizem que os seres humanos
Nasceram para se amar
Isto eu penso que é engano
Não posso acreditar

Sozinhos nos leva o rio,
E nos perdemos no mar...

Grota do Junco, Fevereiro de 2006
Cap. 2 - A criaçãozinha do mundo

Ah!

Se trabalho muito, me canso.
Se não trabalho, me aborreço.
Seria a vida um avanço,
Ou só o fim do começo?

Prática de vôo

Prática de vôo
De uma borboleta:

Circula sobre as flores
As asas transparentes.

Viena, Outubro de 2008

O caseiro viu a onça


Suave desliza por entre a ramagem
A onça pintada que a caça procura
Pra escapar dela é preciso coragem
A força da onça é parada dura

O caseiro viu, o caseiro ouviu
Onça miando na beira do rio

De susto suspira a infeliz capivara
De medo se esconde no mato o bezerro
Macaco que pula de repente pára
Atiçar a onça pode ser um erro

O caseiro viu...

Corujas se calam e sábias esperam
O bote da onça, da presa o grunhido
Os cachorros latem e as vacas berram
Macuco se cala e fica escondido

O caseiro viu...

Depois que a pintada já matou a fome
Retorna o silencio pro meio do mato
O caseiro vira pro lado e dorme
As vacas já sonham com a hora do trato

O caseiro viu...

No céu já rebrilha a lua crescente
Trilhando o caminho pra perto do dia
Trazendo esperança e alegria pra gente
E a beleza da onça a mata alumia

O caseiro viu...

Grota do Junco, Março de 2006

A criaçãozinha do mundo

A folhinha verde se enrola de medo
Quando vê a formiga.

A formiguinha come, come,
Enchendo a folha de buraquinhos.

A lagarta se enrosca no caule da couve
E vai roendo, de vagarzinho.

O caule vai se afinando, ficando fraquinho.
Bate o vento e adeus pé de couve.

Grota do Junco, Fevereiro de 2007

Olhar de rapina


A raposa espreita no fundo do pasto,
Reluzem os olhos, sutis, cobiçosos.

A busca da presa é lenta, precisa.
A fome que a move não é de comida,
É o orgasmo da caça, o gosto do bote.

Assim que a ave está presa nos dentes,
Já perde a raposa aquele seu ímpeto.
Se enjoa da caça, já sonha de novo
Com mais galinheiros, aves nos ninhos,
Pintinhos, patinhos, galinhas de angola.

Ah, que mundo tão cheio de coisas gostosas,
Não dá pra caçar assim de uma vez.

Na fila esperam as presas felizes,
Fixando os olhos no olhar de rapina,
Sem chances de escape, adeus liberdade.

Espreita a raposa, prepara seu bote:
Mais uma vez
Mais uma vez
Mais uma vez...

Grota do Junco, Julho de 2006

Corre, macuco!


Corre, corre, macuco!
O caçador já te viu.
Corre, corre, te esconde!
O caçador já te viu.

O caçador que não caça
Mas faz por assim dizer
É cidadão de outra praça,
Aqui o que veio fazer?

Ele gosta de comer
A tua carne magrela
Tanta fome há de ele ter,
Pra te botar na tigela?

Tens penas e pernas só,
Comer-te é mesmo um pecado
Só de pensar dá um dó,
Chô, caçador malvado!

E ele vem se esconder,
Ficando assim de butuca,
Tem um enorme prazer
De armar a arapuca

Já vais correndo, voando
Desajeitado bichinho
Se morres de quando em quando
Renasces devagarinho

Como criança sapeca,
Como a minhoca na terra,
Como fazedor de encrenca,
E assim tua estória se encerra.

Grota do Junco, Junho de 2006

Encontro no Pesqueiro


Fiz um pão de centeio,
Joguei água quente no formigueiro.
Cavoquei o cupim até o osso,
Deixei a horta pelo meio.

Arrumei sem precisão o esterqueiro,
Enfiei na terra do pêssego o caroço.
Tomei banho meio metade, meio inteiro,
Cheirozinha, roupa limpa, entrei em devaneio.
Ah, melhor mesmo é comer peixe no Pesqueiro!
Eta domingo colosso.

Pesqueiro Zé Pequeno, Domingo de Carnaval 2006

Vida de Cachorrinho

Cachorrinho vira-lata, vem comer o ossinho!
Já te jogo prá que pules, charmozinho,
Mas se não te prevines, lá vem pontapé.
Enfias o rabinho por entre as perninhas,
Acuado no canto, ofegas até…

E então, vira-lata, vais aprendendo
A detectar assim num instante:
Se a mão se estendendo
Vai ter o bastante
Ou o pé que te atinge
Te larga morrendo…

Grota do Junco, Maio de 2006

Fim-de-semana apertado


Duas horas da manhã,
Lá fora o escuro é total.
Morcegos revoam no beiral do telhado.

Nem pia a coruja, nem latem os cachorros,
Só fazem os grilos o seu barulhinho,
E a geladeira que liga e desliga.

Grota do Junco, Maio de 2006

Catadora de pinhão


Aqui no chão
Catei pinhão
Aqui a aranha
Mordeu minha mão

Enchi o saco,
Um saco e meio,
Levou o burro
Meu saco cheio.

Passei o mês
Todo catando
Voltei pra casa
Com a mão abanando.

Dinheiro sim,
Dinheiro não,
Dinheiro é pouco
Pro meu pinhão.

Grota do Junco, Março de 2009

A andorinha


Então, a andorinha
Cansada de fazer verão – sozinha -
Espalha as asinhas e plana.

Ah, andorinha tonta, tontinha!
Planar sem cair só faz gavião.
Você, não.

E no segundo mesmo em que assim pensava,
(Eu pensava assim)
Despenca a andorinha
Girando, girando
E descobre o chão.

Viena, Setembro de 2009

Argila


É fria, é fria,
A pedra que não é pedra.
É dura, é seca,
Entre abruptas arestas.

É frágil, é frágil,
Coberta de rachaduras.

Parece pedra, parece!
Mas é barro, simples barro,

Nada mais.

Grota do Junco, Maio de 2009
Cap. 3 - Memória

Perfil


Um pé no chão,
O olhar no porão.
Cabeça no céu,
A terra na mão.

Tem pressa e preguiça,
Tem pouca visão.
Caminha sozinha,
Com fome de cão.

Mordaça na boca,
Padece de medo.
Mas ama em segredo
Aquela que é louca.

Viena, Maio de 2009

A casa assombrada


A casa que eu visitei estava toda escura
Não tinha portas nem janelas e dentro era só poeira,
Tinha uma secura de arrepiar os cabelos.
As cadeiras com pernas quebradas, os sofás embolorados.
Tinha um cheiro de coisa velha, tinha um ar de abandono.
Tentei arrumar a casa, peguei vassoura e varri,
Peguei o balde e joguei água,
Peguei os moveis e tentei limpar,
Mas a poeira estava grudada nas paredes,
A casa só sabia fazer um gemido
Que vinha de dentro e dentro ficava:
As portas fechadas, nada entrava e nada saía.
Então tentei trazer um pouco de prazer para essa casa
Que já não podia conter nenhum prazer.
Era tarde, já era tarde demais e lá fora chovia.
O rio se enchia, as águas passavam por cima da ponte.
Eu não podia deixar a Casa,
Nem fugir para lugar nenhum.
Paciência.

Grota do Junco, Fevereiro de 2007

Por que?




Por que é que um dia assim de repente
A vida desanda e acaba com a gente?

Por que é que o barulho do vento lá fora
Parece o gemido de gente que chora?

Por que é que a lua brilhando intensa
Não tem a beleza que a gente pensa?

Por que é que o fogo que esquenta a comida
Não acende a chama desta minha vida?

Por que é que as vozes de gente na estrada
Avivam esperanças que acabam em nada?

Por que é que eu me enrosco na minha agonia
E fecho os meus olhos para a luz do dia?

Por que é que estando aqui tão sozinha
Eu acho que a culpa só pode ser minha?

Grota do Junco, Fevereiro de 2007

No dia em que eu fiquei cega

No dia em que eu fiquei cega
Levei um choque medonho,
Achando que era um sonho,
Que de surpresa nos pega.

No meio da escuridão,
Nem chorei e nem sorri,
De gritar eu me esqueci,
Contive o meu coração.

Vieram prestar ajuda,
Mas ajuda eu não quis
Gostei de ser infeliz
Para ver se a vida muda.

Poderia ter andado
Me apoiando nas pessoas,
Mas as chances eram boas
De pagar preço dobrado.

Fiquei então quietinha,
No meu canto encolhida.
Nem achada e nem perdida,
Com a noite que era minha.

Grota do Junco, Junho de 2007

Desaterro

Me diz se estou certa,
Me diz se estou errada:

De tanto sofrer de amor,
acabei desaterrada.

Agora eu sou só um plano,
Planície cheia de nada.

Foi burrice, foi engano,
Ou foi coisa programada?

Grota do Junco, Março de 2006

Corte

Hoje me aconteceu
Aquilo que eu mais tinha medo :
De pensar tanto em você,
Acabei cortando o dedo...

Grota do Junco, Fevereiro de 2006

Nem que

Nem que a vaca tussa
Eu vou esperar por você,
Nem que a porca ruça
Aprenda o ABC.

Nem que o mundo se acabe
Sem eu poder te ver,
Nem que o teto desabe;
Vou mesmo é te esquecer.

Nem que o sol se ponha
Sem esperar ter nascido,
Nem por falta de vergonha
Vou sofrer o já sofrido.

Nem que a policia chegue
E já queira me prender,
Nem que o diabo pegue
Você por não me querer.

Nem que chova canivete
Em cima da minha cabeça,
Nem que a dona Ivete
Insista que eu te esqueça.

Nem que a rima torta
Acabe de me acabar,
Prefiro cair morta
Do que ter que te esperar.

Grota do Junco, Junho de 2007

Pedra preciosa

Você é dura de lidar,
É igual pedra preciosa:
Bem difícil de encontrar,
Cobiçada e perigosa.

O seu brilho nos atrai,
Esconde armadilhas sutis
E nelas a gente cai
Como animal infeliz.

Pedra lisa e lapidada,
Completa e sem defeito,
Cada face vem armada
Para dar tiro no peito.

Garimpeira de má hora,
No seu brilho eu toquei,
Meu juízo foi se embora
E caída aqui fiquei.

Era mesmo diamante,
Pedra dura, de valor,
Ou o brilho de um instante
Era poeira, vapor?

Grota do Junco, Julho de 2007

Não enxerguei nada

Tava deitada na cama
Sem coragem de acordar.
Esta vida é um drama
Muito duro de encarar.

Fiquei com os olhos fechados
Pra ver se o dia não vinha,
Mas os meus sonhos danados
Continuaram a ladainha:

De dores e sofrimentos,
De queda em poço sem fim.
De choros, gemidos, lamentos,
Tomando conta de mim.

Então resolvi parar
De sonhar mesmo acordada.
Abri os olhos devagar,
Olhei e não enxerguei nada.

Grota do Junco, Janeiro de 2007

Tanta Coisa


De tanto sofrer já paguei muita promessa
De tanto sonhar arranjei unha encravada
De tanto pensar criei galo na cabeça
De tanto sentir engoli uva estragada

Se as coisas são tão tortas
E a verdade está no meio
Quem é sábio fechas as portas
Chuta a bola pra escanteio

De tanto ter fome encolheu minha barriga
De tanto ter medo me perdi no mato escuro
De tanto ter amor acabei puxando briga
De tanto ter saudade meu sapato fez um furo

Se o que dizem faz sentido
Que de amor ninguém morre
Então farei um pedido:
Me deixem tomar um porre

De tanto levar pancada fiquei toda dolorida
De tanto me enganar troquei o pé pela mão
De tanto me lembrar acabei bem esquecida
De tanto comer grama acabei com indigestão

Se o planeta está secando
E a água vai se acabar
Fico aqui devaneando
E vocês vão se lixar.

Grota do Junco, Agosto de 2007

Tropeçando


Quem se arrasta não tropeça
Nem bate com a cabeça,
Só que andar é bom à beça
Por incrível que pareça.

Quem se arrasta come mato,
Quem caminha vai com o vento.
Pé descalço ou de sapato,
O que vale é o movimento.

Quando a gente fica em pé,
Pode mesmo tropeçar.
E se machucar até,
Mas também pode andar.

E andando a gente sente
Que tudo se movimenta,
E a vida vai com a gente
E a nossa alegria aumenta.

Me arrastei muito na vida,
Hoje eu ando bem a prumo.
Mesmo a queda dolorida
Me ajudou a tomar rumo.

Grota do Junco, Janeiro de 2007

Ferros quentes

A chama da fogueira se eleva em curvas e espirais,
O calor do fogo espalhando em círculos as faíscas.
Dois seres muito humanos, um de um lado, um de outro,
Refletem e absorvem a luz que os aproxima
E os afasta na dança das labaredas.

O céu imenso recolhe a claridade, esconde estrelas,
Só Vênus se mantém no alto, absoluta luz,
Olhando a cena, a dança, o baile dos amores:
De um há muito exauridos, do outro enregelados.

A mesa e os bancos, o vinho aberto e dois copos,
Duas vozes reverberando no espaço escuro/claro,
Claro/escuro, contido em círculo de fogo e aço.
Fogo de fogueira, aço de gestos, palavras, movimentos.

Um ser vê, refletida nas chamas, a menina que foi,
O outro sonha com o brilho de novas celebridades.
A fala entrecruzada se encolhe, se estica e se perde,
Entre fogo, amor, ódio, labaredas de pura dor.

As horas e o céu girando com a Terra, e nós,
Encantadas com as nossas doces humanidades,
Nossos ferros quentes de marcar sentimentos,
Punhais invisíveis recortando peles e ossos.

E assim o fogo mesmo lentamente se consome,
As chamas reduzidas, claro/escuro sem contornos.
Uma voz, um gesto, mãos que não se encontram.
Escuro/escuro, em lugar da serenidade.

Um caminho a seguir, a lembrança de um encanto.
Porteiras que batem, um carro subindo a ladeira.
Vênus ainda espreitando as últimas fagulhas,
Silencio tomando o espaço como garoa fina.

Dois seres estranhos que um dia se acharam,
Retomam o fio de seus pensamentos,
Nos quais se alinham em reta infinita:
Eu, Eu, Eu, – Minha Vida, Minha Vida, Minha Vida.

Grota do Junco, Julho de 2007

Frente a frente

Estamos frente a frente,
eu e tu, que já não és.

Te conheci?
Mesmo não te conhecendo?

Quem eras é o que perdi,
Quem sou, já não estou mais sendo.

Grota do Junco, Janeiro de 2008

Medo

Tinha medo do que via,
Do que via tinha medo.
Caçava luzes fugidias,
Buscava rumos a esmo.

Andava onde não podia,
Comia o que não gostava.
Amava quem não existia,
Não estava onde estava.

Perdeu-se no breu da noite,
Comeu-lhe o medo, coitada.

Grota do Junco, Janeiro de 2008

Novas Rimas

Agora que eu tenho esta nova vidinha,
É pegá-la pelas perninhas
E ensiná-la a andar…
Não é a de antes, não é a que esperava,
Mas é a que veio.

Benvinda, minha nova vidinha.
Vamos lá, opa, opa, não tropeça!

Grota do Junco, Fevereiro de 2006

Memória

Daqui a cinqüenta mil anos estaremos
Usando as mesmas palavras,
Sussurrando os mesmos segredos,
Sofrendo os mesmos tormentos.
Seja como for, seja como vem,
Cinqüenta mil anos - tão longe, meu bem!

Viena, Junho de 2009
Cap. 4 - Aqui e Ali

Cinco da Tarde

A moça da Vespa
No tráfego dança.
Não corre nem voa, balança.

Seguro de vida assegura a moça
Que em transe na Vespa
Pela avenida avança.

Viena, Ringstrasse, 2009

Ode à Dutra

Salve, salve, estrada querida,
Salve, caminhos e caminhões.
Perpétua, vibrante e negra avenida,
Levando desejos, destinos, opções.

Assim sossegada, poltrona estendida,
Do ônibus a vista alargando tuas beiras,
Te vejo correndo, paralela à minha vida.

Guará, Taubaté, São José -
Seria mesmo o mundo real?
Respiro fundo, tonteio feliz,
O cheiro de gases me pega, brutal.
Fechando os olhos, dormindo até,
Sonho que chegas também em Paris.

E vou pra cidade, outra dimensão,
Mar de concreto, Himalaia paulista.
O que foi, o que vem, é a direção
Inversa à da dor, é a tua pista.

Mais duas horas, Metrô, o espigão,
Meu bem me espera na Consolação.

Indo para sampa em Junho de 2006

Viva Jesus!


Abunda a vida no seio da Igreja
Ribomba o evangelho nos altos falantes
Com palmas e gritos a massa festeja
Milagres e curas em tons delirantes

Falando em linguas a moça estrebucha
No chão se enrola, e viva Jesus!
Aqui nesta hora quem tem a fé murcha
Se dana no inferno e não vê a Luz.

Com muita presteza saltita o pastor
A grana cheirando no fim do sermão
Da ira de Deus já espalha o terror
E “Glória Jesus” traduz salvação

Enfim se aquieta a mulher possuida,
Chorando se senta e retoma a razão
Pede ao Senhor prá mudar sua vida,
Virar em palácio o seu barracão.

E eis que já passa a coleta de grana,
Com olhos de águia o pastor vai e vem
Vai dar prá comprar mais um terno bacana
Porque afinal ele é humano também!

Saindo prá rua, feliz, convertida,
Lá vai a mulher que em linguas falou.
Já dentro do onibus cheio, espremida,
A grana do pão no Templo deixou..

A casa que mora, barraco pequeno,
Cercada de carros, de luz, movimento:
Seriam sinais de um futuro sereno,
Seria o milagre de Deus em andamento?

Em frente da casa, alarmada percebe
Que os carros são mesmo reais viaturas
E as luzes que ela nos olhos recebe
Estão vasculhando as vielas escuras

Na sala ela encontra as crianças chorando,
Soldados apontam fuzis carregados :
É um dos seus filhos que estão procurando
Por roubos e drogas já foi condenado.

Na rua do fundo já tem tiroteio,
Os gritos e as vozes ela reconhece:
O filho no peito acertado em cheio,
A bala os milagres de Deus não obedece.

Perdida,calada no meio de nada,
Detona em seu peito uma bomba de luz
E assim possuida, infeliz, desvairada;
Ela grita em silencio: “Viva Jesus”!

Entre Guaratinguetá e Ap. do Norte, Junho 2006

Festival da Cultura em Sao Jorge


Violão na praça forrada de hippies
Domingo tranqüilo, fim de festival
O fumo circula perfumando o espaço
Ruídos de carros violando a música
E a praça abraça as pessoas sem pressa.

Chapada dos Veadeiros, Setembro 2007

Milagre

Milagre acontecendo neste instante:
Flocos de neve descem do céu,
Dançando ao som do tango
Milonga del Angel.

Viena, Janeiro 2008

Terminal Rodoviário de Barra Mansa

Córdoba me alcança
Em Barra Mansa;
Ao longe, sobe a fumaça em onda
No purgatório de Volta Redonda.

Aqui e Ali



Maria João entrou na contramão
Em frontal colisão com um caminhão
Morreu esmagada na escuridão
E estava com a faca e o queijo na mão

Maria João caiu na piscina
De águas paradas cheirando a urina
Foi para o fundo a pobre menina
Com o nariz cheio de cocaína

Maria João caiu do telhado
Ficou com o corpo inteiro quebrado
Só sobrou um olho bem arregalado
E o sexo aberto todinho molhado

Maria João pensou que era esperta
Entrou pela porta que estava aberta
Topou com um tigre na sala deserta
Serviu de comida para fome certa

Maria João, tão inteligente,
Foi na esquina falar com o tenente
Nem viu o revolver bem na sua frente
Um tiro levou e morreu de contente

Maria João cheia de arrogância
Só não sabia medir a distancia
Entre a alegria e a ignorância
Engoliu um sapo e morreu de ânsia

Maria João, mulher invejosa,
Ficou com a pele toda esponjosa
A língua escura de tão venenosa
Cheia de mato e espinho de rosa

Maria João não valia nada
Tentou ir pra cima e caiu da escada
Agora anda assim feito alma penada
O peito vazio e a perna quebrada

Maria João no mundo moderno
Tirou o vestido e botou um terno
Escreveu poesias no velho caderno
Perdeu-se na noite e foi para o inferno.

Grota do Junco, Março de 2007

A Partida


Cheguei de Sao Paulo com dor de cabeça
Desci do “ Bundão” na encruzilhada
Subi a ladeira de casa com pressa
Estava escuro, não enxergava nada

A luz tava acesa em frente da porta
E aí foi bem fácil achar a fechadura
Assim de cansaço eu estava morta
Mas chegar em casa é uma gostosura

O fogão de lenha eu logo acendi
Pra esquentar a alma não tem outro igual
Um gole de pinga eu também bebi
Pra tirar o stress lá da capital.

A noite era fria mas eu nem liguei
Contente que estava de estar por aqui
Com o Paraibuna já me acostumei
A falta de todos já muito senti

Quando eu for embora lá pro exterior
Esta alegria vou levar comigo
E se a saudade me matar de dor
Morrerei feliz porque estive contigo

Meu bairro querido que eu mal conheço
De tão ocupada com meus pensamentos
Se eu faço tudo do fim pro começo
Só voam pra cá os meus sentimentos.

Grota do Junco, Julho de 2006